terça-feira, abril 19, 2005

O Triunfo da Ignorância

As relações privadas entre os homens formam-se, parece, segundo o modelo do bottleneck industrial. Até na mais reduzida comunidade, o nível obedece ao do mais subalterno dos seus membros. Assim, quem na conversação fala de coisas fora do alcance de um só que seja comete uma falta de tacto. O diálogo limita-se, por motivos de humanidade, ao mais chão, ao mais monótono e banal, quando na presença de um só 'inumano'. Desde que o mundo emudeceu o homem, tem razão o incapaz de argumentar. Não necessita mais do que ser pertinaz no seu interesse e na sua condição para prevalecer. Basta que o outro, num vão esforço para estabelecer contacto, adopte um tom argumentativo ou panfletário para se transformar na parte mais débil.

Visto que o bottleneck não conhece nenhuma instância que vá além do factual, quando o pensamento e o discurso remetem forçosamente para semelhante instância, a inteligência torna-se ingenuidade, e isso até os imbecis entendem. A conjura pelo positivo actua como uma força gravitória, que tudo atrai para baixo. Mostra-se superior ao movimento que se lhe opõe, quando com ele já não entra em debate. O diferenciado que não quer passar inadvertido persiste numa atitude estrita de consideração para com todos os desconsiderados.
Estes já não precisam de sentir nenhuma intranquilidade da consciência. A debilidade espiritual, confirmada como princípio universal, surge como força de vida. O expediente formalisto-administrativo, a separação em compartimentos de tudo quanto pelo seu sentido é inseparável, a insistência fanática na opinião pessoal na ausência de qualquer fundamento, a prática, em suma, de reificar todo o traço da frustrada formação do eu, de se subtrair ao processo da experiência e de afirmar o 'sou assim' como algo definitivo, é suficiente para conquistar posições inexpugnáveis. Pode estar-se seguro do acordo dos outros, igualmente deformados, como da vantagem própria. Na cínica reivindicação do defeito pessoal pulsa a suspeita de que o espírito objectivo, no estádio actual, liquida o subjectivo. Estão down to earth, como os antepassados zoológicos, antes de se alçarem sobre as patas traseiras.

Theodore Adorno, in Minima Moralia
(Este post vai direitinho para aquele que eu e o E. Montenegro sabemos)

9 comentários:

RD disse...

Espero bem que ele continue a negar o título. Até fico enjoada pela comparação. :P

Anónimo disse...

Este texto consegue resumir de forma superlativa, o quanto a vertigem do banal e do imediato nos tem vindo a reduzir a uma espiral opinativa que só serve os interesses da auto promoção e esquece o interesse geral. A ignorância não há-de triunfar... mas faz mossa. Lá isso faz. Beijos Rosa.

RD disse...

É que o mais grave é que nem as pessoas se dão conta nem os outros que bebem os disparates dão conta! E se alguém diz alguma coisa é que fica por armado em esperto. Pois está bem. Por mim que fiquem como querem. Também fico como quero.
É o tal direito que nos assiste, não é? ;)

Anónimo disse...

"pulsa a suspeita de que o espírito objectivo, no estádio actual, liquida o subjectivo."
não poderia ser mais verdadeira a declaração. tudo se torna mais fácil comprovado e entendido. o texto tem uma certa piada na medida em que indica que tudo se vai ajustando à compreensão que é acessível a todos, portanto, à mais limitada. Custa-me aceitar o triunfo da ignorância, mas ele é real. Considero que a teimosia virtuosa dos ignorantes é o aspecto fundamental da sua vitória sobre os outros e digo isto porque vencem sempre pela desistência e cansaço do menos ignorante que assume perante o outro uma espécie de perdão e complacência paternalista. talvez a derrota da ignorância se consiga aumentando o número de resistentes....

estou ctg rosa ;)

RD disse...

Qualquer tentativa do relativismo em desacreditar o absolutismo cai ele mesmo noutra absolutização - a de que tudo é relativo, ora - se tudo é relativo, esta não será também uma verdade absoluta?
É o mesmo que dizer: Nada está completamente certo nem nada está completamente errado ou tudo está completamente certo e tudo está completamente errado.
O relativismo anula-se a si mesmo na sua radicalidade e por princípios lógicos.
Depois, todas as subjectividades por mais únicas que sejam caminham todas para onde? Procuram todas o quê? Não será para o mesmo?

RD disse...

Creio que ele no texto também se refere a isso mesmo, das pessoas por medo do colectivo, baixarem a bolinha e afogarem a sua subjectividade. Está visto que assim é. A subjectividade tem sempre lugar dentro de qualquer assunto/ocasião/situação. Não somos obrigados a "encarneirar" por convenção e pode-se ser aceite na mesma quando há respeito e maturidade, bem como quando concordamos devemos "encarneirar" sem preconceitos. Assim quebram-se barreiras de qualquer camisa de forças. Isto em trocas de opiniões, de ideias as coisas mudam um bocadinho.

Anónimo disse...

Tu e o E. Montenegro saberão a quem se dirige o texto, mas tentanto resumir o teu post num aforisma, eu digo um "dixit" da Tertúlia Académica, expresso aquando a realização de exames orais:

"Nunca discutas com um idiota; primeiro ele obriga-te a desceres au seu nível; depois, ganha-te sempre em experiência".

Em poucas palavras diz tudo.

RD disse...

PJG, sabes que utilizo esse aforisma há anos e hei-de fazer prática dele sempre que assim for. Tal como tu, gosto muito dele e ele resume tudo, não sei de onde o retirei mas foi há já muitos anos mesmo. Também creio que saibas que já eu sabia que o dizias, basta ver o Choque de Gerações, que essa tua frase aparece em rodapé várias vezes. ;)
Beijinho.

Anónimo disse...

Opá....já todos a vira menos eu.

Falta de timming