segunda-feira, julho 23, 2007

Estão a matar o desejo!

Lembro-me de, há alguns anos, me ter oferecido para passar uma tarde com os filhos de uns amigos. Os pais estavam a trabalhar e as crianças ficavam aborrecidas em casa. Planeei levá-las a espaços diferentes que lhes proporcionassem novas actividades, programei percursos e organizei jogos, e até me aventurei na compra de uns pequenos “mimos”. Suponho que se tenham divertido mas, de facto, apenas retive um momento fugaz desse dia: ofereci um gelado (“dos bons” – diria eu; “que insignificância” – responderiam vós) e, perante a total ausência de reacção, tendo perguntado se não gostavam, uma das crianças disse-me ser já o terceiro do dia.
Fiquei estupefacta! Não porque não houve agradecimento da oferta, mas porque não houve alegria no receber.
Desde então reparo naquela criança que faz birra no supermercado e que os pais se apressam a acalmar entregando o objecto pretendido ou aquela outra que, em frente do escaparate dos doces, recusa todos, não obstante a insistência dos pais em lhe quererem dar o que ela escolher. Estão a matar o desejo! E sem desejo nem a criança nem nós nos desenvolvemos ou podemos ser felizes. É o desejo que nos torna responsáveis pela eleição dos fins, que estimula à descoberta dos melhores meios, que confere mérito ao nosso esforço, e que nos recompensa com a felicidade que advém da dificuldade e até da natureza transitória da posse... porque, afinal, o desejo tem de persistir... Aristóteles disse-o no séc. III a.C., tê-lo-emos esquecido no séc. XXI?

Maria do Céu Patrão Neves in Jornal Diário a 2007-07-20

sexta-feira, julho 13, 2007

“Escolhendo-me, escolho o homem”

Opinião

A primeira vez que li não compreendi: “escolhendo-me, escolho o homem”. Avancei no texto de 1948 do filósofo Jean-Paul Sartre para confirmar que o sentido mais evidente da expressão era afinal também o mais genuíno, não obstante a estranheza que pudesse causar. Toda a “escolha” é sempre, inevitavelmente, a expressão de um valor, e tanto o que escolhemos para nós como o modo como escolhemos ser são testemunhos do que valorizamos, do que designamos por “bom” ou “bem”. Escolhemos para nós sempre o que consideramos ser melhor (mesmo se afirmássemos estar a escolher o pior seria ainda o melhor para nós) pelo que, paralela e implicitamente, rejeitamos outras escolhas, destituímos outros pretensos valores. Por isso “escolhermo-nos” é também escolher um modelo de pessoa, é escolher os outros ou como todos deviam ser; é escolher a humanidade.
Sartre destaca este aspecto para acentuar a enorme responsabilidade que nos incumbe em cada escolha. Porque, afinal, nunca escolhemos apenas para nós ou a nós próprios; quando decidimos agir e ser de um determinado modo, quando “nos escolhemos”, estamos a indicar como consideramos que os outros deviam agir e pensar, estamos a “escolher os outros”. Por isso – conclui o autor – devemos ter sempre presente a pergunta: “Que aconteceria se toda a gente fizesse o mesmo?”

Maria do Céu Patrão Neves in Jornal Diário 2007-07-13

«Mais Filosofia»

«Mais Filosofia» é uma rubrica - chamemos-lhe assim, cuja iniciativa partiu e está a ser desenvolvida e dinamizada pela Área de Filosofia da UAç.
Esta área de Filosofia engloba professores e ex-alunos de Filosofia da Universidade dos Açores bem como o Centro de Estudos Filosóficos.

A intenção de trazer mais Filosofia às nossas vidas passa por uma série de artigos, publicados às sextas feiras nos seguintes jornais regionais:
- Açoriano Oriental, versão papel.
- Expresso das Nove, versão papel.
- Jornal Diário, também disponível online no endereço www.jornaldiario.com

Nós por cá tentaremos acompanhar e divulgar as publicações, assinalando os respectivos autores, e esperar que gostem. Que vos façam pensar.
Escusado será dizer que se aceitam sugestões e comentários relativos aos textos.

segunda-feira, julho 09, 2007

Não leia este artigo!

É verdade. Não leia este artigo, pois vamos falar de algo que - não interessa a ninguém.
Vamos falar de homens, de saberes, de pensar e de filosofia.
Filosofia, isso o que é? Filosofia, para que é que serve? Dá dinheiro?
Respondendo à primeira questão, apenas com alguns filósofos, diríamos que Hegel mandava os seus alunos lerem os seus livros; Kant defendia que era necessário ensinar a pensar; Ricoeur chamava a atenção para a importância da compreensão e da captação do sentido, de um pensamento consciente analítico e crítico; José Enes envereda pela hermenêutica e Gustavo de Fraga embrenha-se na fenomenologia. Porém, todos eles compreenderam algo de importante e pretenderam, nos seus diferentes campos de investigação, partilhar esse conhecimento com os demais. Levar-nos, muitas vezes, pela mão, até entendermos e contemplarmos aquilo que tiveram a ousadia ou apenas a felicidade de poderem perceber.
Filosofia? Tem a ver com quê? Dá emprego?
Parece que ninguém sabe…
No entanto, no café, ouvimos falar em “filosofia do futebol” e todos os presentes percebem do que se está a falar. Fala-se de “filosofia governamental” que minoriza a importância da Filosofia no ensino secundário, e todos contestamos. Defende-se a “filosofia do curso” e encerram-se cursos de Filosofia. Todos reclamamos a nossa “filosofia de vida”, e assumimo-(la) com firmeza e determinação.
Afinal, aquilo que parecia a princípio complicado e até mesmo excepcional, reservado só para alguns espíritos esclarecidos, torna-se uma vulgaridade do discurso quotidiano que todos parecem entender.
Enfim, o que se entende por filosofia?
Eu bem o avisei para não ler este artigo.

Gabriela Castro in Açoriano Oriental a 06.07.2007

sexta-feira, julho 06, 2007

“Eu só sei que nada sei”

Opinião

“Eu só sei que nada sei” é por certo a afirmação de Sócrates que mais decisivamente o imortalizou. Repete-se ainda hoje amiúde ora jocosamente, devido ao paradoxo que exprime, ora ironicamente, pelo sentido contrário que pretende evocar, ora eruditamente, na citação de um reputado mestre. Talvez tenha sido uma destas intenções, ou até as três simultaneamente, a perpetuarem o aforismo no conhecimento comum. A mim, porém, apraz-me pensar que é esta magia de condensar uma profunda sabedoria na simplicidade de uma única frase que verdadeiramente a eternizou.
A nossa justa valorização do conhecimento tende a converter todos em pequenos grandes especialistas que emitem opinião sobre tudo com uma invariável e inflexível autoridade. Falam sem ouvir, elevando progressivamente a voz num crescente ensurdecer da sua ignorância. Não se interrogam, nem hesitam; sabem! Porém desconhecem que quem tudo sabe nada aprende. Só quem se questiona e duvida, só quem se reconhece desconhecer pode vir a aprender.
A ignorância é a origem de todo o saber.

Maria do Céu Patrão Neves in Jornal Diário a 2007-07-06