segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Porque achei importante...

... no caso de algum médico ou futuro médico passar por cá, e porque nunca é demais.
Já tinha pensado escrever sobre isto, mas o tempo nunca é muito, contudo, hoje ao folhear a Única do Expresso encontrei uma crónica de Rui Henriques Coimbra sobre o assunto, e quero acrescentar mais qualquer coisinha.
Diz-nos o mencionado senhor, que há uma panóplia de medicamentos que se obtém por receita médica e que são usados para outros fins - é o chamado «Pharming: actividade prosseguida por quem quer obter estados mentais artificiais através do consumo farmacológico. Colheita de prazeres químicos.» Por outras palavras: o netinho rouba os medicamentos do avôzinho esclerosado e apanha boleia para o mundo da felicidade em self-service.
A gravidade da coisa é que são drogas legais e receitadas com facilidade demais por parte da classe médica.
Alguns exemplos mencionados na dita crónica passam pelo Oxy-Contin que é um opiácio em forma de comprimido branco que funciona progressivamente quando é engolido inteiro e retira as dores. Se for cheirado depois de esmigalhado, a sequência científica é alterada, misturada e o Oxy-Contin passa a ser sentido como escape mental e cria logo dependência. Além deste, temos ainda o Vicodin, o Xanax, o Valium, o Lortab, o Percocet e o Adderall - também conhecido pela «cocaína dos putos» porque é usado normalmente para miúdos com défice de concentração (até no South Park já se falou dele).
O que quero acrescentar é o Subutex. Fiz algo parecido com prevenção primária, que é a fase em que se sensibiliza, através de diversas acções/formações/campanhas, o público que nunca consumiu drogas. Em sequência temos a secundária que é a fase em que se tratam os (ex)toxicodependentes, e por fim a terciária que tratará da sua (deles) reinserção social.
Então e com isto, durante o voluntariado, saliento não houve um dos ex-toxicodependentes entrevistados afim de darem a sua opinião e contributo para a prevenção primária, que não me falasse no Subutex e que não o tivesse consumido na fase de dependência.
È esta a realidade em S. Miguel, e garanto-vos que eles não foram aos medicamentos do avôzinho esclerosado, foram ao médico pedi-los, e com uma mentirinha simples lá foram para casa com uma caixa milagrosa que fazia o mesmo efeito que a heroína, e ainda por cima não dava ressaca. O Subutex é um dos possíveis medicamentos usado nos tratamentos mas é usado para consumo desenfreadamente. Deve haver uma forma de controlar isto, ou não?

domingo, fevereiro 27, 2005

Agostinho da Silva (1906-1996)

Agostinho da Silva é dos mais paradoxais pensadores portugueses do séulo XX. O tema mais candente da sua obra foi a cultura de língua portuguesa, num fraternal abraço ao Brasil e aos países lusófonos. Todavia, a questão das filosofias nacionais não é para si decisiva, parecendo-lhe antes uma questão académica: «Não sei se há filosofias nacionais, e não sei se os filósofos, exactamente porque reflectem sobre o geral, se não internacionalizam desde logo».
O problema de que parte é a procura de uma razão de ser para Portugal: «o que eu quero é que a filosofia que haja por estes lados arranque do povo português, faça que o povo português tenha confiança em si mesmo», entendendo por «povo português» não apenas os portugueses de Portugal, mas também os do Brasil, laçados de índios e negros, os portugueses de África, tribais e pretos, como também os da Índia, de Macau e de Timor.
Embarcando num sonho universalista em que os portugueses que vivem apenas para Portugal não têm razão de ser, apresentou-se aos olhos tantas vezes desconcertados dos seus leitores como um cavaleiro do Quinto Império, um reinado do Espírito Santo, respirando um misto de franciscanismo e de joaquimismo e, em todo o caso, obra mais de cigarras que de formigas como era próprio das crianças: «Restaurar a criança em nós, e em nós a coroarmos Imperador, eis aí o primeiro passo para a formação do império», o que é dizer que o primeiro passo dos impérios está sempre no espírito dos homens, aptos para servir, como os antigos templários ou os cavaleiros da Ordem de Cristo.
Partir de crenças como ponto vital e tomar como símbolo preferido que a palavra «crer» parece ter a mesma origem que a palavra «coração», fazendo depois como o Infante, abrindo-se à ciência dos seus pilotos, astrónomos e matemáticos. Tudo dito e defendido com a tranquilidade de quem sabe que até hoje ninguém desvendou os mistérios do mundo e conhece por isso os limites das soluções positivas.
Assim, seria possível valorizar aquilo que a seu ver nos distinguiria como povo e como cultura: um povo e uma cultura capazes de albergar em si «tranquilamente, variadas contradições impenetráveis, até hoje, ao racionalizar de qualquer pensamento filosófico».
Trazer por isso o mundo à Europa, como outrora levámos a Europa ao mundo, tal a missão da cultura de língua portuguesa, construindo o seu domínio com uma base espiritual e sem base em terra, porque a propriedade escraviza e só não ter nos torna livres.

José Marinho (1904-1975)

José Marinho situa-se entre os discípulos de Leonardo Coimbra, empenhado no movimento de reabilitação da «filosofia portuguesa» numa linha profundamente crítica do racionalismo moderno bem como da nossa tradição escolástica e posteriormente positivista. Neste plano de consideração, a sua preocupação marcante foi a de encontrar um espaço para a singularidade da nossa cultura filosófica sem negar a aspiração universal e universalizante da filosofia.
Para Marinho, a humanidade pensa-se necessariamente em cada um dos humanos e daí a noção de uma universalidade singular e concreta, à luz da qual se tornaria possível equacionar o problema de uma filosofia nacional. Não há pensar radicado senão no homem situado, ou seja, não há para Marinho um modelo de racionalidade que desde todo o sempre e para todo o sempre se fixasse no homem, determinando e impondo uma lógica perfeita e única, com regras de pensar que uma filosofia ou toda a filosofia nos obriguem a aceitar, para que possamos usufruir da dignidade humana. Não há por isso uma razão pura, na medida em que importa considerar aquele outro de toda a razão «que do mais fundo solicita o autêntico e real pensamento dos homens».
Por isso, fala-nos de uma «razão sublimada», chamando a atenção para as virtudes da anagogia – nomeadamente no ensino da filosofia concebido como «iniciação» - que, rompendo com o formalismo, atende essencialmente ao mito, à poesia e ao simbolismo, na comum busca da autenticidade humana, que radicando implícita na tradição portuguesa, nomeadamente na nossa poesia e literatura, se trataria de tornar explícita, fundando uma nova tradição e possibilidade de autocompreensão.
Do ponto de vista metafísico e ontológico, situa-se na continuidade da heterodoxia de Sampaio Bruno, superando o dogma cristão da criação pelo tema da misteriosa cisão, princípio lógico sem o qual se tornaria impossível inteligir a alteridade, e que desenvolve na sua mais importante obra, intitulada Teoria do Ser e da Verdade (1961). José Marinho funda ontologicamente todo o existente no que designa por «insubstancial substante», que pressupõe um fundo de enigma, supostamente continuando a nossa tradição cultural do «encoberto».
Para Marinho, o enigma «não é dado para o interrogar fora, (mas) adere radicalmente ao ser que interroga» num quadro de descoberta e encobrimento, possibilitando e desenvolvendo a partir daí o tema da «visão unívoca», ou «ver sem distância».

Leonardo Coimbra (1883-1936)

Os conteúdos doutrinários da sua obra remetem-nos para o conceito de criacionismo, que deu título à sua obra mais importante. O criacionismo afirma-se como uma filosofia da liberdade, radicando nas infinitas capacidades criadoras do pensamento, que dinamicamente se liberta dos determinismos naturais e sociais. Na sua base encontra-se a actividade científica que abordou em duas vertentes complementares.
Por um lado, a ciência representava o «espírito da cultura moderna», constituída na base do «livre acordo», tendo a razão por autoridade única, liberta do autoritarismo de princípios impostos exteriormente à actividade do pensamento. Representava um tipo de acordo que, por ser livre e responsável, considerava como a base de realização do acordo social que pela ascenção do indivíduo psico-social à pessoa, numa dialéctica criadora, geraria a comunidade solidária e livre por que sempre se bateu.
Por outro lado, o modelo de ciência a que se referia nada tinha a ver com o do positivismo. Tratava-se de uma ciência constituída na base da dialéctica nocional do pensamento, ou seja, não incide sobre coisas mas sobre noções ou representações mentais, considerando que a sensação é uma noção psicológica e não um dado e que, como noção que é, não é uma realidade completa mas um momento dialéctico de um processo, numa constante marcha para mais realidade e acréscimo de sentido. É na base deste criacionismo, que começa por afirmar-se inicialmente num plano gnosiológico, que se virá a afirmar a liberdade do homem, pois a realidade não poderá nunca ser deduzida de uma noção sintética superior se essa mesma noção não tiver sido por nós elaborada. Em última análise, a realidade não poderá nunca separar-se da dinâmica do pensamento, não é um conjunto de coisas de que o pensamento se aproprie, mas um conjunto de noções, sempre e já elaborado pela acção criadora do pensamento, num processo em si mesmo ilimitado. Se o espírito se move num conjunto de noções por si elaboradas, então ele é acto criador não se limitando a assimilar e a receber o já feito e o já pensado.
L. C. afirma assim uma dialéctica ascensional que partindo do processo de elaboração das noções científicas nelas se não detém, petrificando ou estagnando, procurando antes elevar-se à constituição da última realidade irredutível, por si definida como a «pessoa moral».
Enquadram-se neste processo dialéctico afirmações célebres de L.C., nomeadamente quando proclama que o homem é livre porque «a vida social lhe permitiu interpor entre a sensação e o acto a demora e a riqueza do pensamento», ou que, «o homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas obreiro de um mundo a fazer».
No plano da educação, à qual dedicou a sua actividade política de ministro, compreende-se que mais importante que a «liberdade de ensino», condição sem dúvida necessária, seja a defesa da «liberdade pelo ensino», o que o fez também proclamar que mais importante que a vulgarização do saber era a elevação do vulgo à altura do homem.

Teixeira de Pascoaes (1877-1952)

Teixeira de Pascoaes produziu a partir da experiência existencial da saudade - presente de forma vaga e imprecisa nos seus primeiros textos em verso - uma reflexão, a que subjaz o princípio fundamental de que o ser manifesta uma condição saudosa. Do Ser ao ser, processa-se uma verdadeira queda ontológica, uma cisão existencial, manifestando o mundo, na sua condição decaída, um "pathos universal". Da condição saudosa de ser resulta pois uma condição dolorosa do mesmo ser. Dor de privação, dor de saudade, consciência da finitude, de imperfeição, de insuficiência ôntica.
A experiência da dor pelo homem saudoso, é simultaneamente individual e universal. Por ela o homem–poeta entende o mundo como "uma eterna recordação", percebendo a realidade como evocadora de uma outra realidade mais real que aquela.
A condição dramática da existência manifesta-se assim numa permanente tensão entre Ser e existir. O homem existe num primeiro nível de dignidade ontológica, partilhando pelo corpo o mundo da matéria, e vive pelo espírito. A vida é pois uma eterna aspiração à ultrapassagem da realidade material. A alienação é a situação que resulta da impossibilidade de o homem ser, verdadeiramente. Dividido entre assumir-se como puro espírito ou pura matéria, o homem não é nem pode ser verdadeiramente, oscilando eternamente entre uma e outra condição.
A saudade é uma via para o conhecimento: por ela abre-se uma via para uma mundividencia, uma concepção geral da existência. O "pensamento poético" de Teixeira de Pascoaes é a expressão da possibilidade de conhecimento que se abre pela via da saudade. O conhecimento poético é simultaneamente estético, metafísico e ontológico: estético porque o que lhe é próprio se conhece pelo sentimento, metafísico e ontológico porque o seu horizonte é o da verdade que manifesta um caracter transcendente.

Antero de Quental (1842-1891)

Do ponto de vista filosófico é o maior vulto da Geração de 70, com uma obra que se estende da poesia à prosa, passando por um rico epistolário de grande importância para a delimitação das várias fases do seu pensamento. Nos primeiros anos da sua actividade, Antero foi um pensador instável, conhecendo sucessivas fases de evolução do seu ideário, ora de entusiástico idealismo, ora de negação e descrença, vindo a culminar no final da vida, numa fase de maturidade e serenidade crítica a que correspondem os seus mais profundos textos em prosa, com destaque para A filosofia da natureza dos naturalistas (1886) e sobretudo para as Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX. (1890).
Foi também a sua visão moral do mundo que determinou a sua filosofia política, marcada pelo socialismo de Proudhon, mas também por esse dinamismo intrínseco que soube estender ao processo de emancipação dos trabalhadores. A emancipação dos trabalhadores deveria ser obra dos próprios trabalhadores, ou seja, da sua energia moral e da sua dignidade, do seu esforço individual e colectivo. Em todo o caso, o essencial a notar é que a superioridade do socialismo sobre as outras formas de organização das sociedades emanava da sua superioridade moral e não do estado: «Cousa alguma grande e duradoura se fundou ainda no mundo senão pela moral: e, se o socialismo tem de ser uma esplêndida realidade, só o será como um passo mais no caminho da evolução moral das sociedades (...), moralidade, moralidade e sempre moralidade».
Noutra vertente, Antero marcou de forma muito sensível a consciência decadentista que desde a Geração de 70 determinou a existência de uma clivagem no diálogo cultural entre os Portugueses, sobretudo através da sua conferência do Casino Lisbonense, intitulada Causas da Decadência dos Povos Peninsulares (1871), onde mitificou o ideal de uma Europa, pátria da civilização e do progresso, da qual tragicamente nos sentia arredados, tese de que mais tarde se viria a afastar.
Em todo o caso, nessa célebre conferência, identificava os erros de via da história pátria, incapaz de pelo culto das ciências, da liberdade moral e da elevação da classe média matar o beato, o fanático e o jesuíta que teimosamente cada português ocultava.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Antero de Quental

Eu não conheço fisionomia mais difícil de desenhar, porque nunca vi natureza mais complexamente bem dotada. Se fosse possível desdobrar um homem, como quem desdobra os fios de um cabo, Antero de Quental dava alma para uma família inteira. É sabidamente um poeta na mais elevada expressão da palavra; mas ao mesmo tempo é a inteligência mais crítica, o instinto mais prático, a sagacidade mais lúcida, que eu conheço. É um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa.

Oliveira Martins, prefácio d'As Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Séc. XIX de Antero de Quental.

Eu acrescentaria ainda, que mais do que um poeta foi um filósofo inquietante. A sua hermenêutica vivencial está muito bem clarificada por Oliveira Martins, pensa o que sente e sente o que pensa. Nunca se atraiçoa e isso é sem dúvida o mais difícil.

domingo, fevereiro 13, 2005

A Cegueira dos Nossos Pareceres

Contra o nosso parecer, nunca achamos dúvida bastante, contra o dos outros sim. A vaidade é engenhosa em glorificar tudo o que vem de nós, e em reprovar tudo o que vem dos outros: nas produções do engenho há uma espécie de criação; daqui procede que ninguém se desdiz sem repugnância, porque a natureza é inflexível no intento de conservar aquilo que produz, e a vaidade nunca renuncia ao lustre da invenção; queremos produzir muito, e meditar pouco, por isso erramos; mas depois o erro se naturaliza em nós, já o não vemos, senão com a figura da razão.

Matias Aires, Filósofo (1705-1764)
in 'Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens e Carta Sobre a Fortuna'

Renunciar à Sede de Poder

Quem não conheceu a tentação de ser o primeiro na cidade nada compreenderá do jogo político, da vontade de submeter os outros para deles fazer objectos, nem adivinhará os elementos de que é composta a arte do desprezo. A sede de poder, raros são os que não a tenham num grau ou noutro experimentado: é-nos natural, e contudo, se a considerarmos melhor, assume todos os carácteres de um estado mórbido do qual apenas nos curamos por acidente ou então por meio de um amadurecimento interior, aparentado com o que se operou em Carlos V quando, ao abdicar em Bruxelas, no topo da sua glória, ensinou ao mundo que o excesso de cansaço podia suscitar cenas tão admiráveis como o excesso de coragem. Mas, anomalia ou maravilha, a renúncia, desafio às nossas contantes, à nossa identidade, sobrevém somente em momentos excepcionais, caso limite que satisfaz o filósofo e perturba profundamente o historiador.

Emil Cioran, in 'História e Utopia'

sábado, fevereiro 12, 2005

A ginástica da dignidade por Carlos de Oliveira

- Dizem em voz alta, não muito alta: que porcaria, que nojo de sociedade, e em voz baixa, baixíssima: ora, o que é preciso é “triunfar”. Esta consciência elástica lembra o chewing-gum e pega-se fatalmente à esquerda e à direita. Por mais dez réis de propaganda ou al contado (também faz jeito). Por ninharias. E no entanto a dignidade cultiva-se como a beterraba ou as abóboras. Semeando-a, adubando-a, colhendo-a na altura própria. Muito rústico? Está bem, arranja-se outra coisa. Citadina. A dignidade, desenvolve-a uma ginástica vigilante e diária, que requer apenas paciência, atenção, vontade. Com uns anos de exercício torna-se instintiva, uma espécie de segunda natureza. Pouco maleável (rentável) na prática social mas esse defeito compensa-o largamente a tranquilidade interior (moral) que permite o crescimento livre de certa intranquilidade (imaginativa, criadora), ponto de partida para toda a obra literária alguns furos acima das “necessidades do mercado”. O que sucede nos casos vulgares é a falta da primeira liquidar a outra ou impedi-la dum completo desenvolvimento. E não me venham com o exemplo de alguns génios i(ou a)morais, porque posso arranjar logo uma dúzia de outros génios para contrapor a esses e, sobretudo, porque disse: nos casos vulgares.

Carlos de Oliveira in Abrupto por JPP

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

O Terceiro Pai

No Público, de Eduardo Prado Coelho. A ler aqui e mais qualquer coisinha aqui.

domingo, fevereiro 06, 2005

A Virtude Pura não Existe nos Dias de Hoje

Numa época tão doente como esta, quem se ufana de aplicar ao serviço da sociedade uma virtude genuína e pura, ou não sabe o que ela é, já que as opiniões se corrompem com os costumes (de facto, ouvi-os retratarem-na, ouvi a maior parte glorificar-se do seu comportamento e formular as suas regras: em vez de retratarem a virtude, retratam a pura injustiça e o vício, e apresentam-na assim falsificada para educação dos príncipes), ou, se o sabe, ufana-se erradamente e, diga o que disser, faz mil coisas que a sua consciência reprova.
(...) Em tal aperto, a mais honrosa marca de bondade consiste em reconhecer o erro próprio e o alheio, empregar todas as forças a resistir e a obstar à inclinação para o mal, seguir contra a corrente dessa tendência, esperar e desejar que as coisas melhorem.

Montaigne, in 'Ensaios - Da Vaidade'

Fé No Sentimento

A razão age com lentidão, e com tantas vistas, sobre tantos princípios, os quais é mister estejam sempre presentes, que a todo o instante adormece ou perde-se, deixa de ter todos os seus princípios presentes. O sentimento não age dessa maneira; age instantaneamente, e está sempre pronto para agir. É preciso, pois, depositar a nossa fé no sentimento; de outro modo, ela será sempre vacilante.
(...) O último passo da razão é o de reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a ultrapassam; se não chegar a isso, é porque é fraca.

Blaise Pascal, in 'Pensamentos'

O Homem É Feito Para Pensar

O homem é visivelmente feito para pensar.
Aí reside toda a sua dignidade e todo o seu mérito, e todo o seu dever é pensar com acerto. Porque a ordem do seu pensamento é começar por si, pelo seu autor e pelo seu fim. Ora em que pensa o mundo? Nunca nessas coisas; mas em dançar, em tocar alaúde, em cantar, em fazer versos, em jogar ao anel, etc., em combater, em chegar a rei, sem pensar no que é ser rei e no que é ser homem.

Blaise Pascal, in 'Pensamentos'

As Pessoas Sensatas

Platão comparava a vida a um jogo de dados, no qual devêssemos fazer um lance vantajoso e, depois, bom uso dos pontos obtidos, quaisquer que fossem. O primeiro item, o lance vantajoso, não depende do nosso arbítrio; mas receber de maneira apropriada o que a sorte nos conceder, assinalando a cada coisa um lugar, tal que o que mais apreciamos nos cause o maior bem e o que mais aborrecemos o menor mal - isso incumbe-nos, se formos sensatos. Os homens que defrontam a vida sem habilidade ou inteligência são como enfermos que não podem tolerar nem o calor nem o frio; a prosperidade exalta-os e a adversidade desalenta-os. São perturbados por uma e por outra, ou melhor, por si próprios, numa ou noutra, não menos na prosperidade que na adversidade.
Teodoro, chamado o Ateu, costumava dizer que oferecia os seus discursos com a mão direita, mas os seus ouvintes recebiam-nos com a esquerda; os ignaros frequentemente dão mostras da sua inépcia oferecendo à Fortuna uma recepção canhestra quando ela se apresenta de modo destro. Mas as pessoas sensatas agem como as abelhas, que extraem mel do tomilho, planta muito seca e azeda; similarmente, as pessoas sensatas muitas vezes obtêm para si algo de útil e aprazível das mais adversas situações.

Plutarco, in 'Do Contentamento'