sábado, abril 09, 2005

Investigação

Parece assim que as nossas convicções ou «opiniões filosóficas» não têm tempo para entrar longamente em diálogo com os grandes génios da tradição filosófica, em virtude da urgência das decisões concretas que a vida nos impõe. Mas o dilema que resulta desta situação volta a colocar-nos perante novos problemas. Ou temos que atrasar indefinidamente, por assim dizer até ao fim da vida, a tomada de posição sobre as grandes ideias que não só nos fazem compreender a existência, mas nos permitem orientá-la e vivê-la, ou devemos a seu respeito decidir-nos numa meia obscuridade, sem verdadeiro conhecimento de causa e sem um processo suficientemente instruído.
No primeiro caso, transforma-nos-íamos pouco a pouco em boas cabeças pensantes, mas paralelamente a nossa existência vivida desenvolver-se-ía muitas vezes de modo não filosófico, como que à margem do trabalho filosófico. No segundo caso, a exigência do filósofo aproximar-se-ía da do homem comum, para o qual as opiniões existenciais - isto é, as convicções em função das quais a vida concreta se orienta diariamente - se formam sob o impacto de elementos menos racionais do que afectivos ou empíricos.
O prolongamento destas considerações de ordem geral leva-nos a compreender que esta alternativa, que não tem nada de fictício apresenta uma saída aceitável. É o devir temporal e progressivo do homem, do filósofo, no seu vaivém entre a existência vivida e o pensamento. Um verdadeiro caminho de pensamento nunca se traça de modo puramente solitário, sem o diálogo com o pensamento de outros, nem nunca totalmente à maneira de fiel copista e comentador. Quanto a este diálogo com as filosofias que nos precederam ou que nos acompanham, é preciso acrescentar que cada um de nós entra nele na medida das suas possibilidades. É precisamente aqui que é válido o adágio escolástico «quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur». Diremos que esta resposta é a do bom senso, em função da qual aparece a dupla conotação utópica dos dois modos da alternativa apresentada. É efectivamente utópico pensar que se possa filosoficamente esperar até ao fim da sua vida para tomar uma decisão acerca dos valores em causa na própria existência. Mas também é utópico julgar que, no caso da filosofia, esta decisão possa ser tomada irracionalmente ou pseudo-racionalmente, sem um sério confronto com o pensamento filosófico anterior.

Michel Renaud in "O Ponto de Partida das Meditações Cartesianas de Husserl", Revista Portuguesa de Filosofia, tomo 40, Actas do II Colóquio Português de Fenomenologia, 1985 [4], 198 pp.

8 comentários:

RD disse...

Concordo plenamente. Há uma infinita variedade de modos de vida possíveis, determinados pelo poder de decisão e consolidação de valores, a não ser que a pessoa acredite num destino qualquer e assim condicione o seu agir atrás de moinhos de vento. Acredito piamente nesse decreto humano. É só uma possibilidade como outra, mas acredito nela.
Afinal há quem delibere voluntariamente como agir na sua vida ou não há?*

Anónimo disse...

Em vez da citação de Jacques Rigaut prefiro a de Isabel Allende (" O plano infinito "): "o aborrecimento é raiva sem entusiasmo".

RD disse...

De acordo, não conhecia essa e é mt bonita.
Raramente me falta entusiasmo seja para o que for, até porque tento unir o útil ao agradável sempre que possa. Não lido bem com falta de entusiasmo. :)*

RD disse...

A de Rigaut aborrece-me pela resignação. :P

Anónimo disse...

Agora que arranjei um espaçozinho (contingências da vida profissional e material), decidi deixar o meu comentário a este texto. Na minha opinião a grande questão do Homem, enquanto ser pensante, é que não dando a natureza saltos, a evolução se processa dialécticamente, pelo que ele vai assimilando as três grandes questões (Quem Sou? Donde vim? Para onde vou?)gradualmente, por etapas. Podemos até estabelecer um paralelismo com o que se processa na natureza: Infância/Primavera; Adolescência/Verão; Idade Adulta/Outono; Velhice/Inverno. Certo é que a evolução espiritual e filosófica do Homem cresce na mesma proporção do seu decréscimo somático. Embora que, tenhamos de ter sempre em consideração o elemento de relatividade que lhe está sempre e inexoravelmente inerente. Senão veja-se o amadurecimento precoce de algumas pessoas, o que em si também se explica pela existência de uma intuição mais desenvolvida, podendo dessa forma atingir um certo grau de presciência. O que acham desta idéia? Rosa, obrigado pela partilha. Beijos.

RD disse...

É uma boa analogia. O paralelismo entre o desenvolvimento humano esperado e tido como normal, com a ciclícidade da Natureza. Pela História das Ideias bem podemos entender como muitos pensadores foram injustiçados e reconhecidos só mais tarde pela sua intuição profético-filosófica.
Creio que sim, que a intuição pode ser mais apurada nuns que noutros.
Condicionada também por alguns factores, nomeadamente os genético-culturais, e onde o mais importante e que faz a diferença, é para mim, a procura e o amor ao conhecimento - onde reside o daimon de cada um que não se deixa ser abafado pela época ou por outros. Quem não tenha uma intuição mais desenvolvida pode conquistá-la com trabalho, mas há quem a tenha em bruto, simplesmente à espera de ser lapidada. O encontro das duas é normalmente um bom resultado, mas a genialidade - diz Kant, é inata e latente em qualquer fase da vida, não se revela necessariamente por etapas.
Contudo, também acredito e aqui já pelo que vejo, que de pouco serve ter-se potencial quando este acaba por ser nulo por não se fazer nada, e aqui entra a tal liberdade impulsionadora da preserverança, de que muitos falam e poucos a conhecem. ;)
Beijos.

«« disse...

este texto é fantástico...é daqueles que fazer um comentário, por mais pertinente que seja, tem a importãncia da chuva que chuveu à cem anos...nbravi

RD disse...

Michel Renaud, para mim, é fantástico. Miguel, se ainda precisa de coisas sobre ética, este senhor é do melhor que há a comentar. Ele e Isabel Renaud. Estão vivinhos da Silva, por isso actualissímos. bj*