sábado, dezembro 04, 2004

Espinosa (1632/1677) - Tratado teológico-político

Espinosa perseguia os princípios da verdadeira religião e pretendia substituir a revelação pelas luzes naturais da razão, neste seu Tratado teológico-político esforçou-se por interpretar a Bíblia segundo as luzes da razão, o que lhe trouxe críticas violentas e injustas.
Espinosa na sua obra, fala-nos da interpretação da Escritura, obra esta como sabemos, de uma leitura peculiar devido às características que a compõem e fazem dela a obra única que é.
Sublinha então algumas características que nos permitem interpretar a Escritura. Para este, o método de interpretar a Escritura não difere muito ou em nada mesmo no método de interpretação da natureza.
O método de interpretação da natureza consiste em descrever a história da natureza e concluir daí, com base em dados certos, as definições das coisas naturais. Também para interpretar a Escritura é necessário elaborar a sua história autêntica e depois com base em dados e princípios certos deduzir como legítima consequência o pensamento dos seus autores. Por outras palavras, é a partir desta interpretação, apenas da obra, que se pode compreendê-la. Não se devem admitir outros princípios nem outros dados além dos que se podem extrair da obra e da sua história, só assim podemos interpretar sem tanto perigo de errar e discutir com segurança as coisas que ultrapassam a nossa compreensão como aquelas que conhecemos pela luz natural. Esta, para o autor, é a única e correcta via de interpretação além de estar em conformidade com o método de interpretação da natureza.
A Escritura trata também de coisas que não se podem interpretar pelos princípios conhecidos pela luz natural, daí que há factos que ultrapassam a compreensão humana como os milagres e as revelações. Com isto, Espinosa diz-nos que é apenas na Escritura que se deve procurar respostas e não fora desta. Quanto aos ensinamentos morais há que ver que não podemos julgar a Escritura pelos nossos preconceitos mas sim a partir da própria Escritura, só lá podemos perceber a inclinação e certeza dos profetas para a justiça e bondade, e para quem não sejam evidentes estes factos terá dificuldade em perceber a obra. Temos que partir do princípio da veracidade, e também para Espinosa, a Escritura é uma obra sem definições, só a compreendemos a partir de deduções nossas.
Para que tudo isto seja possível existem vários factores a ter em conta, um deles será o perceber a língua em que o texto foi escrito, pois embora a Escritura seja divulgada em outras línguas, aparecem-nos sempre hebraísmos. Um segundo ponto será tentar perceber o sentido das ideias, não a verdade. Não nos podemos deixar influenciar pelo nosso raciocínio ou preconceitos, temos que manter a mente aberta e ter em conta interpretações metafóricas que nos surgem e que para nós até podem parecer não as ser, mas no sentido em que está no texto, por causa até da língua usada (por exemplo), serem metáforas.
Cada interpretação tem que ser feita de acordo com o texto ou obra em questão e nunca através das nossas ideias pré-concebidas. Outro ponto será ainda, ter em conta e investigar se as fontes são fidedignas ou não, com efeito, para sabermos quais as opiniões que são enunciadas como leis e quais as que são ensinamentos morais, importa conhecer a vida, os costumes e os estudos do autor. Este aspecto torna mais fácil explicar as palavras de alguém mais facilmente e ainda podemos conhecer melhor o seu talento e maneira de ser. Importa saber a época, lugar e para quem foram escritas as obras e também se com os tempos a obra foi adulterada ou não por outras pessoas afim de entendermos ou adquirirmos ensinamentos apenas verdadeiros.
Na história da Escritura é necessário, antes de tudo, procurar o que é mais universal e que constitui a base e fundamento de toda a obra, há que encontrar os pontos ou assuntos principais. Depois destes é que passamos a assuntos mais particulares, práticos e diferentes em várias situações, tem que haver adequação à interpretação.
Na vida prática para se analizarem textos será desta forma acima referida, mas numa forma especulativa já não será assim tão fácil. Temos que partir também de princípios universais averiguando através de frases que sejam claras o que são as profecias e revelações, em que consistem e depois o que será um milagre e assim por diante até chegarmos às coisas mais comuns.
Sobre isto Espinosa diz-nos que podemos apenas conjecturar mas nunca concluir com certeza e com fundamento na Escritura. Para este autor, este seu modo será o mais correcto de interpretação da Escritura e até o único que permite encontrar o verdadeiro sentido.
Acontece frequentemente corromper-se o pensamento de um autor, alterando-se-lhe as frases ou interpretando-as mal conforme a sua obra vai sendo transcrita ou interpretada ao longo do tempo. O conhecimento da Escritura é extraído apenas da própria.
No entanto, como o autor refere, podemos observar que este método apresenta várias dificuldades sendo uma delas o conhecimento da língua hebraica. Não temos em que nos basear, visto que o povo hebraico pouco ou nada nos legou, há apenas fragmentos da língua e um pouco de literatura. Assim sendo torna-se impossível determinar com segurança o verdadeiro sentido de todos os textos da Escritura, nem mesmo através de comparações de frases ou textos dá para termos esclarecimento límpido, o que venha a coincidir terá sido mero acaso.
Aprofundando o que já foi mencionado sobre os autores ou fontes fidedignas, surge a necessidade de saber se a história contada é a correcta, pois como já constámos várias vezes na nossa vida, existe por vezes a mesma história contada de formas muito diferentes. Temos com isto, que descobrir quais as autênticas e se não terá havido outras versões apresentadas por autores de maior autoridade ou mesmo credibilidade.
A forma como o texto é escrito também é de uma importância significante, há quem escreva de uma forma clara, simples e inteligível para que todos entendam sem dificuldades, e quem escreva de uma forma obscura que só nos trás dificuldades ao entendimento. Assim, Espinosa, é da opinião de que com um ensinamento claro adquirimos logo o verdadeiro sentido, sendo quase desnecessário investigar as fontes, o autor ou a língua, um texto claro é perceptível até ao nível de conhecimento de uma criança.
O ensinamento da verdadeira piedade exprime-se por palavras mais correntes porque são mais simples e fáceis de entender. Desta forma, podemos perceber com clareza o conteúdo da Escritura no que diz respeito às coisas salutares e necessárias e não temos que nos inquietar com o resto já que na maioria das vezes não podemos abraçar a razão e pelo intelecto todo o resto.
Espinosa é um defensor da luz natural como princípio do conhecimento da Escritura, para o autor a luz natural é o que é humano, meditado durante muito tempo e só com muito trabalho encontrado, a luz sobrenatural é para ele um dom divino concedido unicamente aos fieis e não é necessário para o conhecimento ou interpretação da Escritura, diz até que quem precisasse da luz sobrenatural para entender os profetas seria porque estava carenciado de uma luz natural.
Espinosa contesta a opinião de Maimónides mostrando-nos de que nada valia o seu método de interpretação e que este era de todo inútil.
Em suma, cada homem com o direito de liberdade que tem, tem também o direito de julgar o que bem entenda, mesmo em matéria religiosa este tem o seu voto a dar. Sendo assim, através de uma educação bem conduzida, da sua livre decisão e advertência piedosa e fraterna qualquer homem tem autoridade de julgar qualquer assunto como bem entender.
É então que para Espinosa, mais uma vez o seu método de interpretação é o correcto pois a norma para essa interpretação só pode ser a luz natural comum a todos os homens e não uma qualquer luz superior á natureza ou uma qualquer autoridade externa. Este é um método em consonância com a índole e a capacidade natural do comum dos homens.
Todas as dificuldades apresentadas não resultam da sua natureza mas sim da negligência do homem.
Espinosa diz que o remédio está na luz natural a que chamamos razão e que se encontra em cada um de nós. Os homens procuram Deus nos livros sagrados e nas palavras dos profetas, não vêem que nos livros e nos discursos apenas há letras e sons, que é somente pela sua razão que dão um sentido a tudo isto e que, numa palavra, só podem encontrar Deus nos livros porque já o tem em si mesmos. A revelação pelos livros supõe, portanto a revelação interior, para atingir a verdadeira religião e verdadeira felicidade, temos apenas de utilizar como convém a nossa razão.
Este conhecimento da natureza de Deus, sendo realmente comum a todas as ideias de todas as coisas, está compreendido também na ideia do nosso corpo, isto é, da nossa alma. Para falar de outro modo, no nosso conhecimento devem estar compreendidas as condições sem as quais o nosso conhecimento não seria possível; deve ser possível dar conta do facto de que pensamos, porque de facto pensamos; e, uma vez que o nosso pensamento é real, contém realmente em si as condições que o tornam possível; ora nada se pode conceber sem Deus; pelo próprio facto de termos ideias, pensamos, portanto, implicitamente a ideia de Deus em cada uma delas. O que acontece por acaso a quem usa da sua razão, e sem que disso se aperceba claramente, é que aquele que reflectiu sobre a ideia verdadeira dada o faz para cada verdade particular e, cada vez que o faz, descobre em si uma parte de uma alma eterna; com verdades particulares assim directamente apreendidas, ele constrói-se realmente uma alma, a sua alma; toma consciência e identidade da sua verdadeira natureza com a natureza absoluta do pensamento, com Deus.

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