sábado, dezembro 04, 2004

Edmund Husserl (1859-1938)

A Filosofia como ciência rigorosa

A obra filosófica de Husserl é uma das obras fundamentais do séc. XX, testemunhada pela sua posteridade por muitos outros seus seguidores ou mesmo apenas por muitos outros que a vários níveis se inspiraram nele. É que a filosofia de Husserl retoma o desafio que a ciência triunfante do início do séc. XX lança à filosofia e restitui a esta última um lugar ameaçado e contestado. Com efeito, o projecto de Husserl é, segundo as suas próprias palavras, instituir a filosofia como “ciência rigorosa”, num contexto de crise. Esta crise é simultaneamente a do fundamento das matemáticas e a da filosofia. Na viragem do séc. XX, o psicologismo e o positivismo dominam e, através deles, por um lado a convicção de que as leis lógicas se reduzem ás leis psicológicas que regem a natureza particular do espírito humano e que, por outro lado, a verdade só pode ser encontrada no campo das ciências.
Existe aí um duplo perigo: o de reduzir ao silêncio a filosofia, cuja ambição sempre foi o de conhecer o conjunto das produções – científicas, mas também culturais – do espírito, e do relativismo que recusa conceder à verdade um carácter absoluto. A tarefa da filosofia será reabilitar o vivido, o concreto, sem com isso renunciar ao vigor racional.

O regresso às próprias coisas

Esta palavra de ordem formulada por Husserl manifesta a vontade de descrever simplesmente – antes de qualquer tentativa de explicação – a forma como uma coisa se apresenta à consciência, o modo como as coisas se manifestam. Isto é, elas existem como fenómenos. É por isto que Husserl designa o seu método como “fenomenologia”.
Todavia, é necessário precavermo-nos do contra-senso que consistiria em interpretar os fenómenos como meras aparências, cuja essência seria necessário captar. Pelo contrário, a fenomenologia é uma descrição das essências. Ela descreve o que se passa quando a consciência visa um objecto. Para isso, utiliza aquilo a que Husserl chama a “variação eidética” (do grego eidos, ideia) que consiste em fazer variar imaginariamente as percepções da essência de forma a fazer surgir a invariante.
Por exemplo, o triângulo não seria um triângulo se tivesse mais que três lados, etc., mas a essência do triângulo não existe independentemente do acto de consciência que o visa. Se a visão da essência (neste caso do triângulo) é bem originária, e não derivada – como pretende o empirismo ou o psicologismo – a essência não é separável do acto que a visa, como afirma o platonismo ou os defensores de um realismo das essências. Para acentuar a correlação entre o acto de consciência que visa um objecto – isto é, a intencionalidade – e o objecto visado, Husserl utiliza, aliás, os termos de “noese” para o primeiro e de “noema” para o segundo. Não há transcendência do objecto visado em relação ao sujeito que o visa.

A redução fenomenológica

Nada é mais certo do que a existência de um mundo que ultrapassa e extravasa a simples visão que dele eu possa ter, ou a simples consciência que dele tenho. A questão será então compreender essa certeza, apoiando-me não nesse primeiro nível de evidência simplesmente factual ou empírica: o mundo existe fora de mim, mas numa evidencia mais originária e apodíctica que a fundamenta.
Retomando explicitamente a tese de Descartes, Husserl, nas suas Meditações Cartesianas suspende todo o juízo de existência acerca do mundo e pratica a epoché ou epokhé (do grego, “suspensão de juízo”), a existência do mundo objectivo é colocada entre parênteses e suspende-se qualquer adesão ingénua a seu respeito, de maneira a facilitar o acesso ao eu transcendental. Através desta redução fenomenológica, Husserl alcança a certeza apodíctica da existência do sujeito ou do eu transcendental. Ora, mesmo suspendendo toda a crença no mundo, o sujeito visa um objecto que não se esgota nessa visão. É o que demonstra a sua análise da percepção. Esta casa, na percepção, revela-me uma superfície, mas, enquanto objecto visado, ela tem também uma profundidade, por exemplo, é a forma ou “essência” da casa que é captada pela consciência, e esta excede em todos os sentidos o que é percebido como simples facto, ou conjunto de sensações. Do mesmo modo, nas suas Lições sobre uma Fenomenologia da Consciência Interior do Tempo, Husserl mostrava já como a temporalidade só é possível nesse duplo movimento de presença-ausência, de imanência e de transcendência.

A Intersubjectividade

Sucintamente, se a redução fenomenológica faz aparecer o sujeito transcendental como aquilo a partir do qual se podem manifestar significações e um mundo apreendido através delas, ela todavia não desemboca nem num relativismo, nem num solipsismo. Ou seja, a redução fenomenológica não isola o sujeito ou o eu transcendental num mundo á sua medida. Pelo contrário, é outrém que aí ocupa um lugar primordial. A constituição do mundo, na sua espessura e transcendência, isto é, na sua dimensão simplesmente humana, pressupõe de facto outrém, como Husserl procurará demonstrar na sua Quinta Meditação. Porque outrém não é um simples objecto; é também um sujeito, um alter ego. Outrém apreende um mundo a partir de uma perspectiva e de um ponto de vista diferentes dos meus. No entanto, é o mesmo mundo que é assim constituído e apreendido. Outrém completa e enriquece a minha percepção do mundo. A consciência é intencionalidade objectiva de uma outra coisa que vem a ser ela mesma, constituída pela e na intersubjectividade, isto é, todo o ser humano é um alter ego para ele mesmo. Sem essa partilha e essa troca, isto é, sem a intersubjectividade, como apreensão de um mundo comum, nenhuma cultura artística, histórica ou política seria possível. É através da intersubjectividade que se elabora aquilo a que Husserl irá designar por “o mundo da vida”, esse mundo constituído, que toda a consciência encontra na sua presença originária e no qual ela se inscreve.
Melhor explicando, a redução fenomenológica, não isola o sujeito ou o eu transcendental num mundo à sua medida. A redução une-me aos estados de consciência puros e ás unidades constituídas, essas são inerentes ao meu ego, ou seja, fazem parte do seu próprio ser concreto.
O mundo objectivo pertence à esfera da intersubjectividade, na condição de transcendência “imanente” deixando de ser transcendente. Deste modo dá-se a apreensão de um corpo semelhante ao meu na minha esfera primordial. Então o fenómeno aparece pois esse corpo tem a significação do corpo orgânico. Está bem patente a importância do outro para a minha percepção do mundo.
O meu corpo apresenta um ego que é na realidade um alter ego e consequentemente este é apresentado mas não de uma maneira directa, o que há é uma transposição aperceptiva e ontológica do que se passa com o meu corpo.
Nessa união baseia-se a possibilidade de uma elaboração doutrinal da coexistência humana, uma teoria do mundo objectivamente válida, intersubjectividade, e ainda uma concepção “científica” e rigorosa da história e da cultura (intersubjectividade monadológica).
O objecto intencional não só está presente na consciência de um modo apodíctico como se constitui igualmente através de uma operação do eu, pela qual os elementos orientados à designação e formação do objecto consciente se unificam.
Segundo diferentes perspectivas, o tempo realiza uma primeira síntese unificadora que através da durabilidade do “eu puro” unifica o “presente vivo”, no qual se manifesta a identidade do objecto, mas para a realização desta manifestação junta-se o elemento formal, a intencionalidade, pela qual a consciência pura torna consciência do objecto.
Esta intencionalidade parte do eu e forma os dados materiais em ordem à constituição do objecto, esta, enquanto informa os dados realiza a “noese” e enquanto projecta os dados para a designação dos objectos constitui a “noema”. Esta “noema” ainda não é o objecto intencional, este objecto intencional aparece no prolongamento do seu sentido noemático como pólo oposto ao “eu puro”.
É o fruto da redução transcendental à consciência pura, não negando o objecto da atitude natural nem coincidindo com ele. Para que este apareça válido para além do sujeito individual, deve manifestar-se como intersubjectivo, ou seja, constituído para uma multidão de sujeitos cognoscentes.
Na atitude natural, Husserl mantém-se realista como o homem vulgar, na atitude transcendental sem negar a realidade exterior, fixa-se na realidade enquanto concebida, porque esta posição apresenta-se-lhe como necessária a fim de começar por aquilo que oferece a garantia segura de evidência apodíctica.
Husserl vai apresentar a ciência do “mundo da vida”, reconhecendo o carácter específico desse mundo, apresentando-o na experiência imediata da vida pré-científica. Para Husserl, a primeira operação a realizar é, a já acima mencionada, redução da ciência objectiva, não pondo em causa a sua existência e sem a intenção de viver no mundo sem esta ciência, apenas colocá-la entre parênteses mas continuando a ser um facto cultural, assim atinge-se um plano em que o mundo é considerado tal como é, como o experimentamos na nossa realidade.
O mundo será aquilo para qual remete todo o ente e a partir do qual este se compreende. O individual não nos é dado definitivamente mas como um horizonte que se mantém sempre aberto. É pelo mundo que o ente recebe sentido, este “mundo da vida” é transcendência no aspecto de uma horizontalidade aberta, fundamenta todo o ente e dá orientação ao campo do eu.

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