segunda-feira, janeiro 30, 2006

Condição Humana

(...) Vivemos, com efeito, na era do ser humano em aberto, a condição humana encontra-se actualmente, no estaleiro. (...)
Se nos quisermos orientar para o exercício duma reflexão crítica e prospectiva é conveniente começar por selecionar uma tese positiva: o estatuto em que a condição humana se encontra, hoje, situa-se perfeitamente no clima temático da modernidade, que pode ser remetido, como se de um momento originário se tratasse, para o diálogo entre Deus e Adão na Oratio (1486) de Pico Della Mirandola: nesse texto o que caracteriza a essência do conceito de humanidade é o seu carácter novo e incompleto, aberto e indeterminado. O ser humano é a criatura que simultaneamente é criadora de si própria. (...)
Se a humanidade não se perdeu, na exacta medida em que ainda não se havia encontrado, porquê então a existência de um mal-estar generalizado, um mal-estar perante o qual a nossa cultura, na multiplicidade das suas manifestações, parece querer desviar os olhos?
As respostas são também múltiplas. Por várias vezes, e de múltiplos modos, perdemos os instrumentos de navegação, e ficámos com o sentimento de que não rumamos para o cumprimento dum destino, mas antes que nos limitamos a andar à deriva.
Passemos em revista breve alguns dos sinais dessa constante perda de bússola, consitutiva do regime em que tem funcionado a cultura moderna:
a) Houve o claro sentimento/percepção de uma mudança de rota: a perda da noção de humanidade associada ao direito natural, como reacção à Revolução Francesa, que conduziu à manutenção do esclavagismo nos EUA, ao imperialismo-nacionalismo e colonialismo europeus, e ao climax de tudo isso no nazismo.
b) Crise da ideia de progresso como ideal-reitor, nas suas múltiplas formas.
c) Ruptura na ideia de confiança cega na aliança da ciência com a tecnologia (Chernobyl e contestação ecológica).
d) Descrença na ideia do papel libertador das instituições (crise do Estado): depois da passagem do Estado soberano, para o Estado nacional, vivemos no dilema de saber se a época que se abre aponta para um Estado cooperativo ou para uma estranha abolição do Estado, um recuo a uma nova era fragmentar?
e) Abandono da tese de um fim-da-história redentor e justificativo. As teodiceias laicas estão em agonia profunda. O que agora se pretende é que a história não acabe...
f) Crise na crença do papel dos valores éticos e solidários como factor de emancipação da humanidade: o testemunho contrário da fome e das múltiplas espécies de segregação subsistentes (nunca houve, simultaneamente, tanta riqueza, nem tanto sofrimento sobre a Terra...).
g) Cepticismo quanto à crença no valor principal da nossa tradição iluminista, quanto à razão como factor de transparência na condução da história humana e no alargamento da esfera controlada pela própria deliberação racional: A racionalidade parece subordinar-se ao primado de uma arquitectura pulsional, que parece estender-se não só ao individuo como à sociedade; parece termos passado da disciplina das paixões ao espectáculo da sua desinibição compulsiva.
h) Perda dos mecanismos de controlo democrático sobre a prospecção construtiva do futuro.
i) Desencanto no choque da globalização como experiência de dezenraizamento e injustiça em vez de comunhão e partilha.
j) Emergência de um profundo sentimento de culpa (mesmo que débil e confusamente formulado) em relação às gerações futuras e em relação às outras criaturas que a intensidade do nosso presente coloca em causa. É aí, aliás, que reside a demanda por um, ainda muito nebuloso, horizonte de desenvolvimento sustentável.
Em síntese: parece ter-se realizado uma das advertências nietzscheanas - perdemos Deus, mas ainda não ganhámos a altura e a distância em que poderíamos dispensar os ídolos.
Já não somos sociedades ávidas de progresso e de futuro, porque tememos a nossa transformação em sociedades devoradoras de futuro.

Viriato Soromenho-Marques (Univ. de Lisboa), Crise Ambiental e Condição Humana. Actas do colóquio Ética Ambiental: uma ética para o futuro. Coordenação de Cristina Beckert. 2001.
*(o negrito no texto é meu.)

7 comentários:

Anónimo disse...

Senhora (ponto).

Niiisssssss...

eu
não
percebo
nada
do
que
escreveu.


Cumprimentos.

Anónimo disse...

ihih. e agora...?! :)

LN disse...

Nem será acidental o título, de uma obra da Arendt :)

ainda que tempo não abunde - passo o desafio que me passaram... enfim, «manias!». Espero que, pelo menos, se divirta :)

Anónimo disse...

Tudo isso que é dito, não será resultado do que já advertira Weber, sobre a transformação do "homo religiosus" em "homo oeconomicus"? Em suma, a famigerada «gaiola de aço»?

O capitalismo está a caducar a olhos vistos. O mundialismo a emergir, ainda que timidamente. Mas há-se chegar a altura...

Tudo tem o seu tempo. Os regimes, sistemas económicos, políticas ou tendências, nada disto são excepções a esta asserção: tudo tem o seu tempo.

Dialética idealista ou romântica? Não...simplesmente hegeliana.

Biranta disse...

Uma forma de dizer isto tudo, em poucas palavras é: D. Quixote e seus "moinhos de vento"; ou, numa fórmula mais caseira e folclórica: "se a minha avó não tivesse morrido ainda hoje era viva!". Em ambos os casos, as "sentenças" não adiantam um milímetro para a resolução dos problemas. Nem sequer, a meu ver, para a sua compreensão (no sentido em que a "compreensão" corresponde a um estádio de avanço. Aqui não se avança!).
Todos os males da humanidade aparecem, no texto, como se impostos por um determinismo inelutável. Assim, parece que é muito importante analisar os nossos males, mas sem que isso tenha qualquer utilidade para acabar com eles.
Nem o autor nem,certamente, algum dos seus leitores se identificará como peça dessa engrenagem maldita que nos empurra para o abismo. Eu muito menos!!! Se nos dermos à maçada de inquirir, um a um, todos os habitantes da terra, "inquiríveis", acerca deste mesmo tema, o panorama repetir-se-á com cada um a incluir-se entre as vítimas, mas nunca entre os responsáveis. Mesmo aqueles que, existencialisticamente, clamam pela culpa "de todos nós", que as pessoas têm de mudar, estão sempre a dirigir-se aos outros, que têm de adoptar os seus pontos de vista. Apenas usam o "nós" para que as suas palavras se transformem em colóquio, entre "amigos", para mais facilmente serem ouvidos. Mas quem tem de mudar são os outros.
Com isto, o que eu quero dizer (mesmo que ninguém tenha pedido a minha opinião) é que, afinal, os males da humanidade não têm origem na humanidade, mas numa ínfima parte dela. E, no entanto, vivemos em democracia, submetidos, teoricamente, à "vontade da maioria". Passemos então ao passo seguinte: Uma das características fundamentais da nossa condição de seres humanos é sermos capazes de resolver problemas, de evoluir, de transformar... e até de nos transformarmos. Mas isso é uma característica humana, que não se pode "manifestar" em sociedades desumanizadas, como são as nossas. É que aquela capacidade que temos de nos transformarmos está a ser usadas por alguns para nos desumanizar. Falo, obviamente, da propaganda e da cultura (ou falta dela).
Porém, como convém a qualquer "empreendimento" humano, contrário aos interesses da humanidade, também este tem o seu "calcanhar de Aquiles"... que reside na vigarice dos nossos sistemas eleitorais, no facto de se manterem, neles, práticas nazis, ou feudais (de qualquer modo reaccionárias e prepotentes) de eliminar, pura e simplesmente, a maioria dos cidadãos (os abstencionistas) da participação na definição dos destinos dos países e da humanidade. Assim se criam falsas maiorias, se usurpam poderes e representatividades, para serem usados e abusados, contra todos nós, por uma meia dúzia de energúmenos. Quando isso acabar, quando passar a ser impossível manter essas práticas nazis, os nossos problemas estarão em vias de solução. A questão é que uma grande parte da intelectualidade (que devia ir à frente, nestas matérias) ainda não percebeu a importância de colocar no seu lugar, fora da normalidade, um procedimento tão perverso. Habituados a ele, desde sempre, as pessoas nem se questionam, nem ligam... Assim como os que nasceram nos regimes esclavagistas achavam normal a escravatura...
Outros, para nossa desgraça, assimilaram muito do misantropismo que preside à actuação dos dirigentes e não confiam nas maiorias; deixaram de ser humanos, no sentido de seres gregários... Essa é outra "armadilha"!
Resumindo: Como em qualquer estratégia de combate, as vantagens dos detentores do poder só se mantêm enquanto poderem escolher o terreno, mantendo o nosso minado! Fora do terreno deles; isto é: quando tiverem que assumir as suas verdadeiras representatividades, as suas vantagens desaparecem e "eles" deixam de poder destruir o Mundo e a humanidade, em nosso nome. Têm que nos "perguntar", que ter em conta a nossa opinião e a nossa vontade... É justo, é legítimo, é democrático... e os nossos problemas começarão a ter solução.
Já "o outro" dizia: "podem-se enganar todos por algum tempo; podem-se enganar alguns por muito tempo; mas ninguém consegue enganar todos por todo o tempo".
"Eles" já andam a enganar-nos há tempo demais.
Entre nós estes problemas são mais graves e gravosos, porque as nossas classes políticas e dirigentes são mais pérfidas, prepotentes, perversas e reaccionárias do que nos outros países. Perderam toda a noção de dignidade e de idoneidade; é a bandalheira total!
O meu apelo é: tomemos nas mãos as nossas próprias competências, como elementos da humanidade! Exijamos que os líderes o sejam, de facto, e que não excedam as suas competências e capacidades, usurpando representatividade que não lhes foi outorgada, que não merecem e que não sabem nem querem exercer!
É urgente valorar a abstenção! É imperioso que os cidadãos tenham direito à verdade dos resultados eleitorais, porque eles demonstram que a maioria das pessoas não se deixa enganar, ao contrário do que parecem dizer estes textos.
Sejamos actores e não espectadores, ou analistas o que dá no mesmo... Ao menos que as análises sejam honestas... identificando correctamente as verdadeiras questões...

RD disse...

"Uma das características fundamentais da nossa condição de seres humanos é sermos capazes de resolver problemas, de evoluir, de transformar... e até de nos transformarmos." - Caríssimo, de perfeito acordo.
Mas nem todos tem a capacidade de se auto-analisar (muitas vezes por estarem «dentro» demais), daí que os textos (in abstracto), mesmo que não fiéis à realidade ou mesmo que desajustados a qualquer ideologia, sirvam o propósito de inciar processos de crítica reflexiva.
Servem de clicks, se me faço entender.
Deixo-os e deixo-vos. Não precisamos concordar, só gosto de perceber interesse.
Abraço.

Lu disse...

É querida. Parece que um perene mal-estar acompanha e aterroriza a condição humana.
Tudo está bem pontuado por você. Algo de estrutural entranou-se na humanidade, implodindo crises e mais crises.
Mas um momento de crise não é algo necessariamente ruim. Está contida na idéia de crise sua própria gênese, afinal o caos é o princípio criador dos novos paradigmas.
Cada conceito traz em si sua antítese - ou contra-conceito.É necessário fazer escolhas e trabalhar para que elas sedimentem novas possibilidades, mas o mal-estar é a indicação que a muito a se fazer.
Beijos,
Lu