(...) Vivemos, com efeito, na era do ser humano em aberto, a condição humana encontra-se actualmente, no estaleiro. (...)
Se nos quisermos orientar para o exercício duma reflexão crítica e prospectiva é conveniente começar por selecionar uma tese positiva: o estatuto em que a condição humana se encontra, hoje, situa-se perfeitamente no clima temático da modernidade, que pode ser remetido, como se de um momento originário se tratasse, para o diálogo entre Deus e Adão na Oratio (1486) de Pico Della Mirandola: nesse texto o que caracteriza a essência do conceito de humanidade é o seu carácter novo e incompleto, aberto e indeterminado. O ser humano é a criatura que simultaneamente é criadora de si própria. (...)
Se a humanidade não se perdeu, na exacta medida em que ainda não se havia encontrado, porquê então a existência de um mal-estar generalizado, um mal-estar perante o qual a nossa cultura, na multiplicidade das suas manifestações, parece querer desviar os olhos?
As respostas são também múltiplas. Por várias vezes, e de múltiplos modos, perdemos os instrumentos de navegação, e ficámos com o sentimento de que não rumamos para o cumprimento dum destino, mas antes que nos limitamos a andar à deriva.
Passemos em revista breve alguns dos sinais dessa constante perda de bússola, consitutiva do regime em que tem funcionado a cultura moderna:
a) Houve o claro sentimento/percepção de uma mudança de rota: a perda da noção de humanidade associada ao direito natural, como reacção à Revolução Francesa, que conduziu à manutenção do esclavagismo nos EUA, ao imperialismo-nacionalismo e colonialismo europeus, e ao climax de tudo isso no nazismo.
b) Crise da ideia de progresso como ideal-reitor, nas suas múltiplas formas.
c) Ruptura na ideia de confiança cega na aliança da ciência com a tecnologia (Chernobyl e contestação ecológica).
d) Descrença na ideia do papel libertador das instituições (crise do Estado): depois da passagem do Estado soberano, para o Estado nacional, vivemos no dilema de saber se a época que se abre aponta para um Estado cooperativo ou para uma estranha abolição do Estado, um recuo a uma nova era fragmentar?
e) Abandono da tese de um fim-da-história redentor e justificativo. As teodiceias laicas estão em agonia profunda. O que agora se pretende é que a história não acabe...
f) Crise na crença do papel dos valores éticos e solidários como factor de emancipação da humanidade: o testemunho contrário da fome e das múltiplas espécies de segregação subsistentes (nunca houve, simultaneamente, tanta riqueza, nem tanto sofrimento sobre a Terra...).
g) Cepticismo quanto à crença no valor principal da nossa tradição iluminista, quanto à razão como factor de transparência na condução da história humana e no alargamento da esfera controlada pela própria deliberação racional: A racionalidade parece subordinar-se ao primado de uma arquitectura pulsional, que parece estender-se não só ao individuo como à sociedade; parece termos passado da disciplina das paixões ao espectáculo da sua desinibição compulsiva.
h) Perda dos mecanismos de controlo democrático sobre a prospecção construtiva do futuro.
i) Desencanto no choque da globalização como experiência de dezenraizamento e injustiça em vez de comunhão e partilha.
j) Emergência de um profundo sentimento de culpa (mesmo que débil e confusamente formulado) em relação às gerações futuras e em relação às outras criaturas que a intensidade do nosso presente coloca em causa. É aí, aliás, que reside a demanda por um, ainda muito nebuloso, horizonte de desenvolvimento sustentável.
Em síntese: parece ter-se realizado uma das advertências nietzscheanas - perdemos Deus, mas ainda não ganhámos a altura e a distância em que poderíamos dispensar os ídolos.
Já não somos sociedades ávidas de progresso e de futuro, porque tememos a nossa transformação em sociedades devoradoras de futuro.
Viriato Soromenho-Marques (Univ. de Lisboa), Crise Ambiental e Condição Humana. Actas do colóquio Ética Ambiental: uma ética para o futuro. Coordenação de Cristina Beckert. 2001.
*(o negrito no texto é meu.)